quinta-feira, 26 de agosto de 2010



" Eu sei que a gente se acustuma. Mas não devia.

A gente se acustuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor. E porque não tem vista logo se acustuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora logo se acustuma a não abrir de todo as cortinas. E por que não abre as cortinas logo se acustuma a acender mais cedo a luz. E a medida que se acustuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.(...)"

(Marina Colasanti)

Crime e Castigo


Interrogado pelo comissário, jurou inocência. Inquerido pelo delegado, voltou a jurar. Não acreditaram. Doi indiciado, pronunciado, julgado, condenado. Sempre gritando que estava inocente.
assem novamente, para agravamento de pena.
No fim de cinco anos de prisão, acabou convencido de que era mesmo culpado. Pediu que o julgassem de novo para agravamento de pena. Em vez disto, soltaram-no porque findara a pena.
Saiu confuso, já não tinha certeza se era inocente ou culpado, ou as duas as coisas ao mesmo tempo. como toda gente.

(Carlos Drummond de Andrade)

Quando eu era...



" O menino de hoje é o homem de amanhã"

(Machado de Assis)

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A verdade



- Tal fervor pela verdade!Perdoe-me, professor Niestzshe, se soô desafiador, mas concordamos em falar a verdade. O senhor fala sobre a verdade em um tom sagrado, como se quisesse substituir uma religião pela outra. Permita-me bancar o advogado do diabo. Permita-me perguntar: por que tal paixão, tal reverência pela verdade? Em que ela beneficiará meu paciente desta manhãa?

- Não é a verdade que é sagrada, mas a procura de nossa própria verdade! Haverá ato mais sagrado do que a auto-inquirição? Minha obra filósofica, dizem alguns, está erigida sobre areia: meus pontos de vista mudam constantemente. Mas uma de minhas sentenças de granito é: "Torna-te quem tu és." E como descobrir quem e o que se é sem a verdade?"

(Conversa entre Niestzshe e Buier)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A cigarra e a formiga



A cigarra, sem pensar
em guardar,
a cantar passou o verão.
Eis que chega o inverno, e então,
sem provisão na despensa,
como saída, ela pensa
em recorrer a uma amiga:
sua vizinha, a formiga,
pedindo a ela, emprestado,
algum grão, qualquer bocado,
até bom tempo voltar.
-"Antes de agosto chegar,
pode estar certa a Senhora:
pago com juros, sem mora."
Obsequiosa, certamente,
a formiga não seria.
- "Que fizeste até outro dia?"
perguntou à imprevidente.
- "Eu cantava, sim, Senhora,
noite e dia sem tristeza."
- " Tu cantavas? Que beleza!
Muito bem: pois dança, agora..."

(Milton Amado e Eugênio Amado)

Todo amor que houver nessa vida

"Eu quero a sorte de um amor tranqüilo

Com sabor de fruta mordida
Nós na batida, no embalo da rede
Matando a sede na saliva"

"E ser artista no nosso convívio
Pelo inferno e céu de todo dia
Pra poesia que a gente não vive
Transformar o tédio em melodia"
"E se eu achar a tua fonte escondida
Te alcanço em cheio, o mel e a ferida
E o corpo inteiro como um furacão
Boca, nuca, mão e a tua mente não (...)"

(Frejat/Cazuza)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Relatarei sumariamente a doçura da liberdade

Um cão gordo e saciado encontra um logo magro ao extremo: eles se cumprimentam e param:
- Diga-me de onde vem tanta exuberância? Que comida lhe deu esta corpulência? Eu, que sou bem mais corajoso que vocês, morro de fome.
- O mesmo destino lhe espera, se você puder servir o dono de maneira idêntica, responde bondosamente o cão.
- Em quê? Pergunta o outro.
- Vigiar a entrada, proteger a casa contra ladrões, mesmo à noite.
- Estou, seguramente, disposto à isso! Por ora sofro com a neve e a chuva, levo uma vida árdua nas florestas; como me seria mais comôdo viver sob um teto sem fazer nada, alimentar-me e sciar-me de comida!
- Siga-me então.
No caminho, o lobo reparou no pescoço do cão, que a coleira tinha marcado:
- De onde vem isso, meu amigo?
- Não é nada.
- Conte-me, eu lhe peço.
- Acham-me muito fogoso, por isso prende-me durante o dia para que eu repouse qundo está claro e para que eu zele quando chega a noite. No crepúsculo, sou desatado e vou onde quero. Sem que eu tenha que me mexer, trazem-me pão, de sua mesa meu dono me dá ossos e as pessoas da casa atiram-me porções de tudo aquilo que não querem. Assim, sem me cansar, encho o meu estômago.
- E diga-me, se você quiser ir a algum lugar, você pode?
- Não, absolutamente.
- Seja feliz a seu modo, cão, não gostaria de um trono que me tirasse a liberdade.

(Jaime Pinsky)

Sementeira


    

 Ora, a modéstia e inocência infelizmente faltavam já ao coração de Cândida, a modéstia movida pela vaidade, a inocência do pensamento e do sentimento, a inocência essa noute edênica do sono sem sonhos do querubim que não sabe desejar, consumida pela luz da ciência negra acesa pelo sopro da escrava.

    As observações imorais, e o elogio honesto e nobre, a lição da escrava e a inspiração do homem livre, os impétos exigentes da vaidade e o reconhecimento do poder e do encanto da modéstia e da inocência não podiam combinar-se porque se repugnavam, amalgaram-se porém à força do espírito já egoísta e viciado de Cândida, e dessa mistura de príncipios contraditórios e repulsivos uns dos outros tirou ela, sem o pensar talvez, um sistema vil, indigno da sua idade generosa, da educação que devia a seus pais, e da nobreza do sexo, um sistema que se resumia, e que se resumiu em uma palavra - Hipocrisia.

   Cândida não teve consciência da enormidade e da fealdade do seu erro:  quis ser incensada, amada, adorada, porque era vaidosa, e parecer, fingir-se modesta e inocente, porque a modéstia e a inocência realçam a beleza. (...)

A mão de escrava tinha semeado no campo ingênuo e virgem coração de menina: a colheita de espinhos era certa.

  * Trecho de As Vítimas Algozes, de Joaquim Manuel de Macedo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010




"Promete amar e respeitar na tristeza, e na alegria, na saude e na doença, na riqueza e na podreza até que a morte os separe?"

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Muito de mim




"Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra.(...)


Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longiqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro"


* Trechos de A Hora da Estrela, Clarice Lispector.


" Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou o quê? Um quase tudo!" (C. L )