quinta-feira, 12 de abril de 2012

Fascinação



"Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto o olhar fascinado acomapnha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita - pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua comtemplação pura e simples".

(Trecho do conto Tangerine - Girl, Rachel de Queiroz)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

iDéias de Canário



(...)

— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?

O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

— As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

— Quero só o canário.

Paguei lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

(...)
Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

(...) Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me.(...). Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola.
(...)Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos?

Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular.

— Que jardim? que repuxo?

— O mundo, meu querido.

— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior.

— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?


(Machado de Assis)

terça-feira, 10 de abril de 2012


"Tudo merece ser apreciado, pois tudo merece uma interpretação"

(Herman Hesse)

Menino de cidade


- Papai, você deixa eu ter um cabrito no meu sítio?
- Deixo.
- E porquinho-da-índia? E ariranha? E macaco? E quatro cachorros? E duzentas pombas? E um boi? Um rinoceronte?
- Rinoceronte não pode.
- Tá bem, mas cavalo pode, não pode?
O sítio é apenas um terreno do Estado do Rio, sem maiores perspectivas imediatas. Mas o garoto precisa acreditar no sítio como outras pessoas precisam acreditar no céu. O céu dele é exatamente o da festa folclórica, a bicharada toda, e ele, que nasceu no Rio e, de má vontade, vive nesta cidade sem animais.
Aliás, ele mesmo desmente que o Rio seja uma cidade sem bichos, possuindo o dom de descobri-los nos lugares mais inesperados. Se entra na casa de alguém, desaparece ao transpor a porta, para voltar depois de três segundos com um gato ou cachorro na mão. A gente vai andando por uma rua de Copacabana, ele some e ressurge com um pinto em flor. É chegar na Barra da Tijuca, e daí a cinco minutos, já apanhou um siri vivo.
Localiza eletronicamente todos os animais da redondeza, anda pela rua em disparada, cumprimentando aqui um papagaio, ali um ganso, mais adiante um gato, incansável e frustrado.
Não distingue marcas de automóvel, em futebol não vai além de Garrincha e Nilton Santos, mas sabe perfeitamente o que é um mastiff, um boxer, um dobermann. Dá informações sobre as pessoas de acordo com os bichos que possuam: aquele é o dono do Malhado, aquela é a dona do Lord... - Ao telefone, pergunta por patos, gatos, e outros cachorros, centenas, milhares de cachorros, cachorros que prefere aos companheiros, cachorros que o absorvem na rua, na escola, na hora das refeições, cachorros que costumam latir e pular em seus sonhos, cachorros mil.
Sua literatura é rigorosamente especializada: livros coloridos sobre bichos. Enga-tinha mal e mal na leitura, mas fala com uma proficiência um pouco alarmante a respeito de répteis, batráquios etc. Filho de mãe inglesa, confunde fork e knife e mal sabe o que é seal e walrus. Se pede um pedaço de papel é para desenhar a zebra ou a baleia.
É claro que sua frustração causa pena. Por isso mesmo, há algum tempo ganhou como consolo um canarinho-da-terra. Um dia, como lhe dissessem que iam dar o passarinho, caso continuasse a comportar-se mal, correu para a área e abriu a porta da gaiola.
Deram-lhe um bicudo, mas o bicudo morreu de tanto alpiste. Ganhou mais tarde uma tartaruga, pequenina e estúpida, que recebeu na pia do banheiro o nome de Henriqueta. Nunca qualquer outro quelônio deu tanto serviço. Foi ao dentista na cidade, e, ao voltar, disse ao pai pela primeira vez uma palavra horrível: estou desesperado. Tinha perdido a tartaruguinha no lotação.
Ficou o vazio em sua vida. O alívio era ligar o telefone interurbano para a avó e indagar pelos patos que "possuía" em outra cidade. Ou fazer uma visita à futura mão de Poppy, este é um poodle que deverá nascer daqui a meio ano, prometido de pedra e cal para ele.
Outro expediente: caçar borboletas, mariposas, grilos, alojar carinhosamente os insetos nas gaiolas vazias, chamar-lhes pelos nomes dos antigos bichos mortos ou desaparecidos.
Um tio deu-lhe outra vez um canário, o carinho foi demais, o passarinho morreu. Não há nada a fazer, por enquanto, e ele dedicou-se à arte de desenhar bichos. De vez em quando ainda se anima e entra em casa afogueado, mostrando alguma coisa quase invisível nas mãos: "Olha que estouro de grilo!".
Mas os grilos e as borboletas legais morrem ou saem tranqüilamente das gaiolas, e ei-lo novamente de mãos e alma vazias.
Deu um jeito: arranjou alguns pires sem uso e plantou sementes de feijão. O banheiro está cheio de brotos verdes, tímidos. E ele já sabe que possui uma fazenda.

(Paulo Mendes Campos)

Diálogo de todo dia


- Alô, quem fala?
- Ninguém. Quem fala é você que está perguntando quem fala.
- Mas eu preciso saber com quem estou falando.
- E eu preciso saber antes a quem estou respondendo.
- Assim não dá. Me faz o obséquio de dizer quem fala?
- Todo mundo fala, meu amigo, desde que não seja mudo.
- Isso eu sei, não precisava me dizer como novidade. Eu queria saber é quem está no aparelho.
- Ah, sim. No aparelho não está ninguém.
- Como não está, se você está me respondendo?
- Eu estou fora do aparelho. Dentro do aparelho não cabe ninguém.
- Engraçadinho. Então, quem está fora do aparelho?
- Agora melhorou. Estou eu, para servi-lo.
- Não parece. Se fosse para me servir já teria dito quem está falando.
- Bem, nós dois estamos falando. Eu de cá, você de lá. E um não conhece o outro.
- Se eu conhecesse não estava perguntando.
- Você é muito perguntador. Pois se fui eu que telefonei.
- Não perguntei nem vou perguntar. Não estou interessado em conhecer outras pessoas.
- Mas podia estar interessado pelo menos em responder a quem telefonou.
- Estou respondendo.
- Pela última vez, cavalheiro, e em nome de Deus: quem fala?
- Pela última vez, e em nome da segurança, por que eu sou obrigado a dar esta informação a um desconhecido?
- Bolas!
- Bolas digo eu. Bolas e carambolas. Por acaso você não pode dizer com quem deseja falar, para eu lhe responder se essa pessoa está ou não aqui, mora ou não mora neste endereço? Vamos, diga de uma vez por todas: com quem deseja falar?

…Silêncio.
- Vamos, diga: com quem deseja falar?
- Desculpe, a confusão é tanta que eu nem sei mais. Esqueci. Tchau!


(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Contra a Inveja


A minha função espiritual faz de mim uma intermediária entre o humano e o sagrado e para exerce-la da melhor maneira possível tenho como instrumento o Jogo de Búzios. Pessoas de diferentes idades, raças e até mesmo credos, buscam a ajuda desse oráculo. Surpreende-me o fato de que uma grande parte dos que me procuram sente-se vítimas de inveja.
Engraçado é que nunca, nem um só dia sequer, alguém chegou pedindo-me ajuda para se libertar da inveja que sentia dos outros. Será que só existem invejados? Onde estarão os invejosos? E o pior é quando consulto o oráculo e ele me diz que os problemas apresentados não são decorrentes de inveja, a pessoa fica enfurecida.
Percebo logo que existe ali uma profunda insegurança, que gera uma
necessidade de autovalorização. Se isso ocorresse apenas algumas vezes,
menos mal, o problema é que esse comportamento é uma constante. Isso me leva a pensar que cada pessoa precisa olhar dentro de si, tentar perceber
em que grau a inveja existe dentro dela, para assim buscar controlar e
emanar este sentimento, de modo que ela não venha a atuar de maneira
prejudicial ao outro, mas principalmente a si, pois qualquer energia que
emitimos, reflete primeiro em nós mesmos.
Uma fábula sobre a inveja serve para nossa reflexão:
Uma cobra deu para perseguir um vagalume, cuja única atividade era brilhar.
Muito trabalho deu o animalzinho brilhante à insistente cobra, que não desistia de seu intento. Já exausto de tanto fugir e sem possuir mais forças o vagalume parou e disse à cobra:
– Posso fazer três perguntas?
Relutante a cobra respondeu: – Não costumo conversar com quem vou destruir, mas vou abrir um precedente. O vagalume então perguntou:
- Pertenço à sua cadeia alimentar?
- Não, respondeu a cobra.
– Fiz algum mal a você?
- Não, continuou respondendo a cobra
.- Então por que me persegue?- perplexo, perguntou o brilhante inseto.
A cobra respondeu:
– Porque não suporto ver você brilhar, seu brilho me incomoda.
Ingênuas as pessoas que pensam que o brilho do outro tem o poder de ofuscar
o seu. Cada um possui seu brilho próprio, que deve estar de acordo com sua função. Existem até pessoas cujas funções requerem simplicidade, onde o brilho natural só é percebido através do reflexo do olhar do outro.
 (...)


Maria Stella de Azevedo Santos é Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá